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O Cemitério Nosso Senhor dos Passos está localizado no município de Penápolis-SP, próximo da rodovia Assis Chateaubriand, sentido Barbosa, cidade ao lado. O cemitério pertence à antiga localidade do Patrimônio Nosso Senhor dos Passos, por isso a origem do nome, onde hoje é uma área rural conhecida como Bairro Lageado. Outro ponto de referência é o Colégio Agrícola.

 

Antes mesmo do surgimento de Penápolis, o Patrimônio Nosso Senhor dos Passos já havia sido formado, a partir da doação de 100 alqueires de terras, concedidos por José Pinto Caldeira e a esposa Maria Gertudes, em 1863. A parte onde hoje é conhecida como Penápolis, anteriormente chamava-se Santa Cruz do Avanhandava e a partir de 1904 passou a pertencer à Comarca de São José do Rio Preto. 

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Foto tirada após missa solene da fundação de Penápolis, em 25/10/1908 - Imagem/Reprodução: “Penápolis - História e Geografia” de Fausto Ribeiro de Barros

Em 1906, os freis da Ordem dos Capuchinhos de São Francisco de Assis, de São Paulo, foram convidados para fundarem um convento, e consequentemente uma cidade, recebendo uma doação de 100 alqueires de terras. As zonas doadas pertenciam a Eduardo José de Castilho e à esposa Ana Melvira. Foi apenas em 25 de outubro de 1908 que Penápolis (ainda conhecida como Santa Cruz do Avanhandava) foi fundada. 

 

No ano seguinte, em 17 de novembro de 1909, Santa Cruz do Avanhandava é elevada à vila, porém é solicitada a mudança de nome, pois já existiam outros municípios do estado com o nome “Santa Cruz” e “Avanhandava”. A partir daí, o território passa a se chamar “Affonso Penna”, mudando logo em seguida para “Pennápolis”, como homenagem ao então presidente da época, Afonso Pena, o qual faleceu no mesmo ano antes de terminar o mandato.

Em 11 de maio de 1914, com a instalação da Câmara dos Vereadores, que Penápolis passou a ser considerada uma cidade. Em 1917, foi elevada à Comarca, a qual até os dias atuais abrange os municípios de Alto Alegre, Avanhandava, Barbosa, Braúna, Glicério e Luiziânia.

Localização das cidades pertencentes à Comarca de Penápolis - Mapa/Reprodução: Google Maps

É importante ressaltar que o cemitério está entre propriedades privadas e, por conta disso, não é possível obter com precisão a localização exata através da Secretaria de Cultura e Turismo de Penápolis (Secult), órgão responsável pela manutenção do lugar. Desde o conflito em 1886 entre os colonizadores e os indígenas Kaingangs "paulistas", em que há o registro de 11 trabalhadores rurais mortos, o cemitério sempre existiu. 

 

De acordo com Alessandra Nadai, professora de História e diretora do Museu Histórico e Pedagógico de Penápolis, além de especialista em museografia, memória e patrimônio, na década de 1990 o espaço passou por uma reforma na tentativa de trazer visibilidade ao local.

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Placa de identificação do Cemitério Nosso Senhor dos Passos, com o nome dos homens mortos no conflito. Registrada em 04/12/2021 - Imagem/Reprodução: Laura Gallinari

A reativação foi feita pela secretária de cultura da época, a memorialista Glaucia Maria de Castilho Muçouçah Brandão. Não foram obtidas informações a respeito da preservação dos muros ou criação de um cruzeiro durante a restauração, sabe-se apenas que foi nessa data que o cemitério ganhou a placa de identificação, que consta o nome de todos os mortos, supostamente, enterrados ali em combate com os Kaingangs "paulistas". 

 

Supostamente, pois de 11 mortos na luta restou apenas um túmulo no campo-santo, de um homem que não está com o nome na placa de homenagem. Antônio Alves faleceu em 1911, 25 anos após a batalha. Segundo Alessandra, não há informações a respeito de quem ele foi. Já as outras cruzes que estão postas no chão foram feitas por frequentadores da Umbanda, que costumam ir ao lugar para fazer suas oferendas.

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Objetos encontrados dentro do cemitério. Havia também vasos de flores, garrafas e miniaturas de anjos. Foto tirada em 04/12/2021 - Imagem/Reprodução: Laura Gallinari

Conforme explica Jose Vitor Passafaro, professor de História em Penápolis e especialista em Ciências Humanas e suas Tecnologias, os primeiros colonizadores do noroeste paulista eram mineiros que fugiam de uma revolta imperial: “Eles vieram pro estado de São Paulo, região de Araraquara, mas lá já era ocupada… E aqui [região de Penápolis] tinha a terra dos gentios, terra devoluta, então eles se fixaram nessa região desde a década de 1850”. 

 

Ainda de acordo com o professor, a primeira cidade do noroeste paulista só foi fundada quase 60 anos depois, com a chegada da Estrada de Ferro Noroeste Brasil. Há poucos registros sobre a segunda metade do século XIX no sertão paulista, especificamente sobre a localização de Penápolis.

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Único túmulo existente no espaço. Observa-se que Antônio Alves foi enterrado no local anos após o conflito. Registro feito em 04/12/2021 - Imagem/Reprodução: Laura Gallinari

Foram encontradas duas versões sobre a relação desses primeiros colonizadores com os habitantes das terras, os Kaingangs "paulistas". A primeira é de Gláucia M. Castilho, a mesma responsável pela homenagem feita no Cemitério Nosso Senhor dos Passos posteriormente. 

 

Em matéria publicada em edição especial do Jornal Interior - Penápolis, de 25 de outubro de 1982, ela apresenta a versão de uma fonte indireta ao acontecimento e época em questão:

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A origem do cemitério

A origem do cemitério

"Nessa época, vez ou outra o povoado já era frequentemente molestado pelos índios caigangues que, quando não trucidavam alguém, viviam fazendo uma série de malvadezas como nos conta D. Laura, (filha caçula de João e Cassiana Castilho) e esposa do sr. Otacílio M. Almeida, hoje farmacêuticos em nossa cidade: ‘— Os índios viviam nos importunando: morávamos naquele tempo em casas de pau-a-pique e em nossa casa havia uma fresta muito grande na altura da porta por onde eles nos espiovanam constantemente nos imitavam e por onde uma vez, após roubarem uma porca muito gorda do chiqueiro, jogaram-na do lado de dentro de nossa casa. A porca ao cair, espatifou-se no chão".

“Em setembro de 1886, porém, enraivecidos com um tiro que os Pinto Caldeira havia lhes dado quando estavam roubando verdura da horta, descarregaram sua ira em mais de duzentas pessoas que já habitavam aquele lugar. Muitas fugiram, porém 11 morreram nesse massacre [...] Os seus corpos, horrivelmente mutilados, foram recolhidos por Manuel Goulart e enterrados no cemitério de Nosso Senhor dos Passos, no Lageado”.

Sobre o conflito, Gláucia detalha o ocorrido no parágrafo posterior:

A segunda versão é do professor e geógrafo Fausto Ribeiro de Barros. De acordo com a citação do autor na obra “São Paulo em Quatro Séculos - Sinopse da História dos Kaingang 'paulistas'”, de Herbert Baldus (p. 317), a relação entre os Kaingangs "paulistas" e os novos moradores da região era harmônica:

“Ao lado dos poucos camaradas que trabalhavam nas reduzidas roças dos criadores do Avanhandava, não raro viam-se alguns índios da região, cujo serviço desacostumado e indolente sempre valia um pouco de rapadura, alguma roupa velha, o fumo e algumas ferramentas quebradas. Aí estava um sinal de harmonia entre índios e civilizados. E prosperavam os retireiros sem largamente derrubarem as matas.Viviam aparentemente felizes os caingangs sem ser molestados. Assim foi até que uns benditos Pintos Caldeira feriram ou mataram alguns índios quando êstes roubavam milho na roça, atividade que não constituía nada de novo e nem revoltante aos outros moradores brancos mais inteligentes e mais humanos”.

Entende-se que foi a partir do ataque inicial dos Pinto Caldeira que os Kaingangs se enfureceram e planejaram uma vingança como forma de resistência. Na edição de 1992 da obra “Penápolis: História e Geografia” de Fausto Ribeiro de Barros, o autor destina um capítulo (No Mutirão Os Bugres Matam, p. 46-47) para o acontecimento que deu origem ao cemitério, descrevendo os fatos detalhadamente: 

“No ano de 1886 o fazendeiro Joaquim Evaristo Pinto Caldeira promoveu o mutirão em sua roça, tendo convidado para tal amigos de outros sítios. Um motivo para trabalho e festa. Enquanto, na sede da fazenda, as mulheres caprichavam no preparo do almoço e todas as iguarias, variadas e fartas, os homens lá na roça, trabalhavam alegremente [...] Dezenas de índios, armados de flechas e longos guarantans, atacaram os trabalhadores exatamente na hora do almoço. Houve uma tremenda luta corpo a corpo em que os civilizados valeram-se de suas ferramentas, da faca, do facão. Como de praxe, as armas ficaram na casa da fazenda. Os trabalhadores lutaram encurralados pela bugrada assassina furiosa, em gritaria infernal. Ainda agonizantes eram monstruosamente trucidados. Cabeças, braços e pernas decepadas de algumas vítimas. Tudo roubado, inclusive as vestimentas”.

É notável os adjetivos pejorativos ligados com a figura dos Kaingangs "paulistas" e toda hipérbole em relação às ações deles. Além disso, em tal capítulo não se fala sobre as atitudes dos Pinto Caldeira antes do ataque, tanto que Ribeiro de Barros até associa “o tradicional ódio traiçoeiro do selvagem explodiu inopinadamente” aos indígenas em questão.

 

O autor diz que Joaquim Evaristo Pinto Caldeira conseguiu escapar vivo, assim como Américo Isaias, Manoel Mendonça, João Pereira e Manoel Lucindo. Há ainda detalhes sobre cada um dos 11 mortos, os quais têm os nomes estampados na placa do Cemitério Nosso Senhor dos Passos, como mostra a obra de Ribeiro de Barros: 

​“1- José Hilario Paulino, moço valente que venceu vários assaltos e matou, à faca, diversos atacantes. Ainda com vida, os selvagens lhe cortaram as peças viris, arrancaram-lhe as tripas; 2- Joaquim Carlos de Castilho, também conhecido por Joaquim Zeferino; moço loiro, casado, proprietário da Fazenda Quaresma; 3- João Mendonça, solteiro; 4- Francisco Mendonça, solteiro; 5- José Martins, solteiro, vindo de Jaú; 6- João Honorio, vindo de Piunhy, solteiro; 7- José Pinto Caldeira, casado, fazendeiro; 8- Francisco Pires, solteiro; 9- João Pinto Caldeira, casado, fazendeiro; 10- Manoel Pereira, casado, fazendeiro; 11- João Pinto Sobrinho, solteiro, mocinho”.

Após esse fato os moradores das redondezas ficaram assustados, ainda mais com boatos de que os Kaingangs "paulistas" estariam esperando por reforços para expulsar ou matar os habitantes dos campos. A maioria das famílias mudaram-se para o outro lado do rio Tietê, inclusive Maria Chica, figura popular e pioneira na ocupação de terras da região de Penápolis. 

 

Os poucos que ficaram no Lageado enfrentaram dificuldades financeiras e até o esquecimento das autoridades, inclusive da Igreja, pois os freis — figuras de representável importância social e política nesse período — começaram a visitar o local com menos frequência para a realização de celebrações religiosas, muito importantes na sociedade da época.

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Onde estão os Kaingangs "paulistas"?

Onde estão os Kaingangs paulistas?

Em resumo, a história dos Kaingangs no noroeste paulista pode ser entendida em duas partes: a primeira,  de 1850 a 1912, que condiz com o sufocamento da cultura e sociedade indígena a partir do processo de colonização da região, juntamente com as expedições religiosas e a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil; a segunda parte destinada à limitação espacial desses povos, a partir de 1912 até os dias atuais, com a criação das reservas indígenas, especificamente Icatu, localizada em Braúna, a 35 km de Penápolis.

Acampamento dos indígenas Kaingangs "paulistas" próximo à região de Ribeirão dos Patos - Imagem/Reprodução: Acervo digital do Museu Ferroviário Regional de Bauru

Foi na segunda metade do século XIX que se iniciaram no sertão paulista as expedições exploratórias, juntamente com os núcleos de subsistência de migrantes mineiros. As expedições religiosas também aconteciam, mas sem muito sucesso segundo a professora e antropóloga Silva H. Simões Borelli, na obra “Índios no Estado de São Paulo: resistência e transfiguração. Os Kaingang no Estado de São Paulo: constantes históricas e violência deliberada” (p. 65):

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“Poder-se-ia afirmar que a cidade de Penápolis surge como consequência infrutífera de catequização de índios Kaingang”

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— Silva H. Simões Borelli

Porém, não se pode dizer o mesmo sobre as consequências da construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Por mais que o objetivo fosse a expansão da comunicação e transporte para o interior brasileiro, as obras invadiram territórios Kaingangs e provocaram grandes conflitos. O professor Vitor Passafaro explica que “Os trilhos foram eletrocutados para matar os Kaingangs, foi colocado roupa e comida com varíola na estrada de ferro para acelerar o massacre Kaingang”. Além disso, havia também os serviços realizados pelos bugreiros, que eram pessoas contratadas para perseguirem e matarem os indígenas, tanto os que atrapalhassem as construções, quanto os que estivessem vivendo em aldeias no meio das matas.

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Homem Kaingang "paulista" usando chapéu e segurando arco e flecha - Imagem/Reprodução: Acervo digital do Museu Ferroviário Regional de Bauru

​​Como já visto, o ano de 1886 foi uma data marcante na história local, por conta do massacre que ocorreu envolvendo os Kaingangs "paulistas" e as famílias dos fazendeiros. No entanto, é importante mencionar que o ataque interrompeu o processo de povoamento e colonização da área, que só voltou a acontecer em meados de 1904, quando os descendentes das antigas famílias voltaram à localidade, numa nova tentativa de ocupação.

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Indígenas Kaingangs "paulistas" vestindo fardas em acampamento - Imagem/Reprodução: Acervo digital do Museu Ferroviário Regional de Bauru

Em 1910 foi criado o SPI (Serviço de Proteção ao Índio), pelo Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC), como uma tentativa de proteger as comunidades indígenas. O primeiro diretor do órgão público foi Marechal Rondon, responsável pela organização das políticas indigenistas. Todavia, pode-se dizer que o serviço apenas delimitou o espaço geográfico desses povos em aldeias espalhadas pelo estado de São Paulo, para que a Estrada de Ferro Noroeste Brasil pudesse continuar sendo construída pelos territórios previstos, sem os conflitos que ocorriam com os indígenas.

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Localização dos postos indígenas e aldeias presentes no Estado de São Paulo - Imagem/Reprodução: “Índios no Estado de São Paulo: Resistência e Transfiguração” de vários autores

Independentemente de como era a relação dos Kaingangs "paulistas" com os moradores do Patrimônio Nosso Senhor dos Passos antes do acontecimento, essa foi a única batalha vencida e, por acaso, guardada na memória em forma de homenagem aos falecidos. Mas onde estão na lembrança popular os povos originários do noroeste paulista? Não existem monumentos ou quaisquer homenagens para eles; e mesmo que existisse algo, não seria o suficiente para a conscientização e reparo histórico de todo o genocídio ocorrido. 

 

Ainda de acordo com Silva Borelli (p. 81), após o hostil contato com os Kaingangs, rapidamente foi gerada uma desarticulação interna e violenta nas comunidades desses povos originários:

“De acordo com os dados fornecidos por Ribeiro e Barbosa, anteriormente aos contatos com as frentes colonizadoras, a população Kaingang no Estado de São Paulo estava estimada em aproximadamente 1.200 índios. Em 1912 e 1916, após a pacificação e já em reservas, este número caiu para 700 e 200 indivíduos, respectivamente. Tiveram, portanto, em aproximadamente 15 anos, sua população reduzida em mais de 80%”.

“Os fatores responsáveis por esta drástica redução demográfica merecem ser analisados. Até a pacificação, o corte deveu-se fundamentalmente ao extermínio de cerca de 500 índios, fruto dos conflitos violentos durante a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. A redução posterior à pacificação não foi menos drástica. Em apenas quatro anos, de 1912 a 1916, novamente a população Kaingang perdeu mais 500 indivíduos. Neste momento, a perda deveu-se a contatos desastrosos que propiciaram a contaminação de epidemias de altíssimo grau de letalidade. Outro fator deve ser atribuído à ausência de nascimentos no período. Durante os mesmos quatro anos, nasceram apenas três crianças, que não sobreviveram”. 

Até o fechamento desta reportagem, não foram obtidos dados atuais e oficiais sobre o número de Kaingangs "paulistas" que vivem nas reservas do estado de São Paulo. Houve tentativas de entrevista com o cacique na aldeia Icatu, em Braúna, mas em razão da pandemia de Covid-19 o lugar estava fechado para visitas externas; também não foi possível o agendamento de encontros online.

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Registro de crianças Kaingangs com vestimentas dos homens brancos - Imagem/Reprodução: Acervo digital do Museu Ferroviário Regional de Bauru

Nos dias de hoje, é de alta repercussão a luta dos povos originários contra o Marco Temporal para Demarcação de Terras Indígenas, onde o embate é dividido principalmente entre os indígenas e latifundiários. Não apenas os Kaingangs "paulistas", mas todas as etnias indígenas carregam o fardo de lidar com o homem branco desde os primeiros colonizadores do país. Os erros são imperdoáveis, além da gigantesca dívida histórica. O Brasil precisa se reconhecer nos povos originários, para que mudanças sociais e políticas sejam efetivas para todos.

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Nota: o termo Kaingangs "paulistas" é trabalhado no texto com aspas na palavra paulistas, pois se trata especificamente da regionalidade que esses povos estão inseridos (região de Penápolis-SP). Há Kaingangs em outras partes do estado e áreas do Brasil, que podem se distinguir por estilo de vida ou outros fatores. Porém, neste trabalho o foco é exclusivo aos Kaingangs pertencentes ao interior paulista.

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A desmistificação

A desmistificação

Por que muitos cidadãos chamam o cemitério como “Cemitério dos Índios”? Essa forma popularmente conhecida sobre o local causa confusão, pois dá a entender que é um cemitério indígena, quando na verdade estão enterrados ali pessoas consideradas inimigas dos Kaingangs "paulistas" na época.

“As crianças sabem que lá é o cemitério dos desbravadores. Mas você pega as pessoas mais velhas e para elas lá é o cemitério dos índios”

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— Alessandra Nadai

Olmair Perez Rillo, 79 anos, aposentado, já atuou como Presidente do Conselho de Cultura e secretário na Secretaria de Cultura e Turismo de Penápolis. Ele recorda sobre a primeira visita ao cemitério: “Foi no dia em que completei dez anos (01/06/1952) e ganhei minha primeira bola oficial de futebol. Lá estivemos levados por nossos pais após retornarmos do Salto do Avanhandava”, compartilha.

 

Ele também conta sobre o misto de terror e curiosidade em encontrar um cemitério “perdido no meio do nada”. Por considerar o espaço um dos pontos mais importantes da história penapolense, Olmair foi ao cemitério muitas outras vezes, para mostrar aos filhos e amigos, além das visitas oficiais enquanto funcionário público.

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Antigo portão de identificação do Cemitério Nosso Senhor dos Passos. A foto foi tirada em 2012 e hoje a entrada é aberta, rodeada apenas por um caminho cercado - Imagem/Reprodução: Rafael Martins 

Mas esse tipo de experiência não se repete em todas as gerações da população: Hiago Tonelli Moreira, 26 anos, estudante e professor, diz nunca ter ido visitar o lugar e que desconhecia sobre até pouco tempo atrás. “Apenas vi fotos do seu trabalho e achei bem interessante o pouco que eu vi”, explica, referindo-se à primeira versão desta reportagem, “Onde estão os Kaingang em Penápolis?”, concluída em agosto de 2020.

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Há um fato curioso e motivacional a respeito da primeira versão desse material jornalístico. Quando esse trabalho começou a ser desenvolvido no oitavo mês de 2020, o cemitério estava em condições de abandono (como exemplifica a última fotografia desta reportagem, adiante). Todavia, logo após uma entrevista sobre o tema com os representantes da Secretaria de Cultura, a prefeitura de Penápolis realizou uma limpeza no lugar, retirando o lixo e cortando o mato em volta. Essa mudança aconteceu em menos de um mês após o primeiro contato sobre a reportagem referente ao Cemitério Nosso Senhor dos Passos. 

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Visão geral do cemitério em 2012. Observa-se que nessa época a pintura estava nova e conservada, assim como o chão estava limpo e sem vegetação alta. - Imagem/Reprodução: Rafael Martins 

Uma maneira de popularizar o tema e mudar a percepção das pessoas sobre o cemitério é de que forma a informação é passada a elas. Em conformidade com Alessandra Nadai, a Secult realiza um trabalho através da sensibilização do assunto: “Essa parte da sensibilização, para as pessoas entenderem a importância daquilo, é o trabalho que a gente desenvolve aqui no museu há muito tempo, um trabalho de educação patrimonial", conta.

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“A ideia é não só mostrar aquela peça antiga, mas contar toda a história daquilo, como chegou até hoje, porque não é mais assim. É fazer esse contraponto sempre” Alessandra relata, dando exemplos de como trata o assunto principalmente com as crianças: “A gente começa abordando o que temos de herança indígena hoje. Por que a gente come tal comida? Por que faz isso, faz aquilo?”.

 

O Cemitério Nosso Senhor dos Passos é como o ponto de interseção entre a realidade dos colonizadores e dos indígenas que viviam na região. Ali apenas um dos lados é homenageado, o que automaticamente cria uma espécie de demonização para o outro grupo. Vitor ressalta que:

“Os lugares de memória eu questiono muito, a maior parte são lugares de memória de uma elite, de um grupo que se autoproclamou importante e que se deve preservar”

​

— Vitor Passafaro

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A importância do Cemitério Nosso Senhor dos Passos para Penápolis

A importância do Cemitério Nosso Senhor dos Passos para Penápolis

Para Alessandra, o Cemitério Nosso Senhor dos Passos é fundamental para se entender a relação atual da sociedade com os povos indígenas: “Por isso mesmo que conhecemos a história, para não repetirmos o que aconteceu”, esclarece. Quando questionada sobre onde se pode encontrar homenagens aos Kaingangs "paulistas" em Penápolis, ela explica que o único local é no Museu Histórico da cidade.

 

Ainda conforme a diretora, o cemitério faz parte de um projeto para tour histórico cultural de Penápolis. “Lá [cemitério] eu acho que é possível fazer parte desse projeto de passeio turístico, para que fale dessa história”, diz. Ela complementa que são necessárias verbas e parcerias entre o público e o privado para a reativação da área.

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Vista externa pelo caminho de entrada do Cemitério Nosso Senhor dos Passos. Foto de 04/12/2021 - Imagem/Reprodução: Laura Gallinari

Segundo Olmair, algumas tentativas de dar visibilidade ao cemitério ficaram pendentes em todos esses anos, como a criação de uma lei para tombamento do espaço, o que consequentemente concederia mais proteção ao patrimônio histórico. Outra tentativa também foi a identificação da localização por meio de placas na Rodovia Assis Chateaubriand. 

 

“Penápolis é considerada um dos mais importantes polos culturais do estado de São Paulo por contar com patrimônios como este. Sua constante manutenção e consequente divulgação em muito colaboraria para o fortalecimento cultural e turístico da região”, Olmair ressalta, sugerindo ainda que através da internet, a Secult deveria “Unir o antigo com o moderno, como forma de preservar os acontecimentos que nos permitiram chegar onde chegamos, além de solidificar os traços culturais dos antepassados”.

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Detalhes observados a partir da visão de fora do cemitério. Registro de 04/12/2021 - Imagem/Reprodução: Laura Gallinari

Mesmo ainda não tendo tido a oportunidade de conhecer o campo-santo, Hiago reconhece a importância do lugar como uma fonte histórica: “[É um] material que ainda temos presente para concretizar esse resgate ao passado, e relembrar das origens e da exploração que teve no estado de São Paulo e como essa situação chegou até aqui”, explica, ressaltando também a importância de fazer a conservação da “memória de pessoas que foram oprimidas e de uma sociedade que se desenvolveu a partir da exploração e genocídio das pessoas indígenas”. 

 

Para o professor Vitor Passafaro, uma forma de intervenção para a valorização do cemitério é criar uma proposta de formação continuada: “Ali precisaria de uma ação, de ter um guia bem formado. Professores, principalmente dos anos iniciais, serem bem formados, mas é difícil trabalhar porque eles têm uma pressão, principalmente os professores dos anos iniciais, de produtividade tremenda”, expõe, referindo-se ao fato do foco ser em disciplinas como Matemática e Língua Portuguesa, o que automaticamente deixa a História para segundo plano.

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Desgaste na cruz do único túmulo presente no espaço. Ao fundo, a presença do cruzeiro. Fotografia tirada em 04/12/2021 - Imagem/Reprodução: Laura Gallinari 

A partir da formação continuada, as pesquisas relacionadas ao tema seriam cada vez mais aperfeiçoadas e trariam mais complemento ao ensino de crianças e adolescentes, principalmente sobre a história regional. Neste ponto, seria possível trabalhar questões de identidade local e expandir esses estudos para toda a população, através de iniciativas no meio turístico e da educação, como passeios guiados ao cemitério, ciclo de encontros e palestras sobre o surgimento de Penápolis, entre outras ideias.

 

Dar visibilidade ao local é de extrema importância para sua conservação, além de popularização entre os cidadãos. Porém, é válido lembrar que essa história precisa ser contada de forma imparcial. O monumento existe e continuará existindo, mas em uma próxima revitalização algumas mudanças poderiam ser feitas, como alterar a placa de identificação, retirando as palavras “homenagem” e “desbravadores”, substituindo a frase por “Em memória aos primeiros habitantes do Povoado Nosso Senhor dos Passos”.

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Entrada do cemitério tomada pela vegetação alta, o que prejudica uma visita segura ao local. Foto de 10/08/2020 - Imagem/Reprodução: Laura Gallinari

O aparente abandono do espaço não é um problema único das gestões anteriores, mas sim de uma cultura estrutural da sociedade brasileira, em deixar patrimônios históricos em última instância. A preservação do Cemitério Nosso Senhor dos Passos poderia ter ocorrido ao longo de todas as últimas décadas, mas não foi feita. Resta agora apenas a conscientização e restauração da área, como uma tentativa de recuperar o tempo perdido.

 

Além disso, é preciso que essa narrativa não seja apenas dos vencedores, mas que dê também voz aos vencidos: “Explicar o processo de desapropriação das terras dos Kaingangs”, Vitor cita como exemplo. Todavia, ele finaliza que existem dificuldades em dar voz ao outro lado da história, por conta do trauma que os povos indígenas sentem após o massacre. Acima de tudo, é necessário o respeito e consciência social ao ouvir o que as comunidades originárias têm a dizer sobre a própria história.

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